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Teoria das Janelas Quebradas e o que sobrou do Direito do Trabalho

 

É do conhecimento de muitos a Teoria das Janelas Quebradas. Mas para quem não sabe ou esqueceu, melhor elucidá-la ou relembrá-la.

No fim da década de 1960, o psicólogo Philip Zimbardo e sua equipe realizaram uma experiência de psicologia social nos Estados Unidos. Dois carros foram abandonados na rua, com as mesmas características, como marca e modelo. Um dos carros ficou no Bronx em Nova York — zona mais pobre da cidade e com problemas sociais — e outro em Palo Alto — uma cidade rica e segura —, na Califórnia.

Em pouco tempo, o carro no Bronx já estava vandalizado e destruído, ao passo que, em Palo Alto, o carro se manteve intacto. Muitos pensaram que a causadora da destruição do carro do Bronx seria a pobreza que assolava a região e explicaria a vandalização pelos recursos do veículo.

No entanto, a surpresa ocorreu quando, posteriormente, também se resolveu quebrar o vidro do carro de Palo Alto e viu-se que o mesmo processo aconteceu como no bairro do Bronx, isto é, o carro também foi vandalizado e depredado.

Vê-se, assim, que um simples vidro quebrado em um carro, ainda que em local nobre e seguro, desencadeou um processo de quebra nas regras de convivência, gerando a partir daí uma sensação de que tudo é permitido sem consequências. A janela quebrada no carro de Palo Alto significou para os depredadores que ninguém se importava com o veículo e que a degradação não ofendia bem jurídico.

Esse estudo psicológico baseou, em 1982, os estudos da Teoria das Janelas Quebradas, desenvolvida na escola de Chicago por James Q. Wilson e George Kelling.

Parece que a degradação desenfreada também ocorre com o direito do trabalho nos últimos tempos no Brasil.

Quando da nossa CRFB/88, autores falavam de um rol de direitos trabalhistas único, que garantiria um mínimo existencial ao trabalhador. Aliás, para parte da doutrina, falava-se até que o “caput” do artigo 7º da CRFB/88 teria previsão especial, porquanto ao dizer “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, teria o legislador autorizado a considerar constitucional não só as normas de direitos sociais previstas na constituição formal, mas também todas as normas infraconstitucionais que detêm conteúdo mais protetivo ao trabalhador [1]. Poder-se-ia dizer, assim, que a legislação trabalhista infraconstitucional sofreria proteção até do artigo 60, §4º, IV da CRFB/88. Outros tempos, não?!

Mas os ditames econômicos de alguma parte privilegiada da sociedade passaram a exigir mudanças do Direito do Trabalho, na onda neoliberalizante a partir da década de 1990. “É a economia, estúpido!” [2] passando a ser princípio do Direito do Trabalho.

A flexibilização do Direito do Trabalho é tema que ocupa a doutrina e a legislação há algum tempo e que segue a diretriz política de que imperativos econômicos justificam a mitigação de direitos trabalhistas como meio para propiciar o desenvolvimento econômico e, portanto, melhorar as condições de vida dos obreiros [3].

E assim os direitos trabalhistas foram sendo “atenuados” com o passar do tempo, supostamente a fim de possibilitar o “desenvolvimento econômico” e, por via reflexa, também ajudar na empregabilidade e rentabilidade do empregado. É o que Bauman se refere, no livro “A Riqueza de Poucos Beneficia a Todos Nós?”, sobre a riqueza gerada na parte de cima e as migalhas que sobram para os mais pobres [4].

Ademais, outro assunto em voga quando se fala em flexibilização de direitos trabalhistas, é que o mundo mudou e o trabalhador de hoje não precisa de “tanta proteção” quanto antigamente.

Não acredito que haja juristas opostos a mudanças para acompanhar o contexto social e econômico. Ajustes são necessários mesmo. A grande questão que se coloca é se a premissa do Direito do Trabalho se alterou com o passar dos anos. Alguns falam que hoje o trabalhador teria maiores condições de compreender o contrato e seus direitos. Mas a premissa da proteção do Direito do Trabalho era o trabalhador iletrado de outrora? Ou é a vulnerabilidade do obreiro e a sua pouca ou nenhuma capacidade de barganha para a realização do contrato de trabalho? Isso mudou nos dias de hoje? Ou será que a vulnerabilidade aumentou com o implemento da tecnologia que retirou postos de trabalho e de empresas de aplicativo que, na lacuna da lei, tentam impor uma “parceria” sem reconhecimento de direitos básicos?

Desde a promulgação da CRFB/88, várias modificações legislativas e jurisprudenciais vieram com o passar dos anos para flexibilizar a CLT e outras leis, bem como as conquistas cristalizadas na Carta Magna. O número de casos é grande, mas cabe citar a autorização legal para contrato por prazo determinado, o banco de horas, previsão de contrato por tempo parcial, a possibilidade de terceirização em atividades-meio (depois expandida para as atividades-fim, pelo STF), entre tantas outras, até chegarmos na famigerada “reforma trabalhista”, consubstanciada na Lei 13. 467/17, com inúmeras modificações celetistas que, na maioria, tiravam direitos caros aos trabalhadores e em outros possibilitava uma maior negociação entre empregado e empregador (como se aquele tivesse ampla liberdade material para isso).

Não é objetivo aqui analisar uma por uma essas modificações e se foram boas ou não, embora se saiba que a “Reforma” não promoveu maior empregabilidade como prometia até o início da pandemia, conforme banco de dados governamentais [5]. Ademais, o nível de desemprego mais baixo visto no trimestre de abril a junho de 2022 se deveu muito mais ao aumento da informalidade do que aumento do emprego com proteção [6].

Prosseguindo no tempo, a pandemia a partir de 2020 assolou o país em todos os sentidos, mais profundamente em termos psicológicos, políticos e, claro, econômicos.

Nesse sentido, como forma de proteger os empregos, algumas MPs, como a 927 e 936, depois convertidas em lei, estatuíram formas de conciliar a atividade econômica e a manutenção do emprego.

Algumas medidas foram salutares para aquele tempo que passou, justificando o que muitos até nomearam de “Direito do Trabalho de Emergência”. No âmbito do STF, discussões foram travadas a respeito de tais medidas, mas tirando alguns poucos dispositivos [7], a maior parte das modificações foi tida como compatível com a CRFB/88 pela emergência da situação, ainda que, no fundo, mais uma vez, tenha flexibilizado os direitos trabalhistas.

Mesmo assim, admitia-se a temporariedade das medidas e para fazer face a algo imprevisível (embora não inédito na história). Muitos pensaram que o Direito do Trabalho “voltaria” à normalidade — se é que poderíamos dizer assim depois do que sobrou após tantas modificações desde 1988 . Ledo engano.

A “janela quebrada” do carro continua sendo motivo para mais depredação do Direito do Trabalho. Preocupa a aprovação pela Câmara dos Deputados e Senado, no dia 3 de agosto, da Medida Provisória 1.109/22 que estabelece a possibilidade de flexibilização de diversos direitos (os quais já eram previstos nas MPs acima, inclusive instituindo em definitivo o Benefício Emergencial), em caso de calamidade pública e para os chamados “grupos de risco”. Não à toa, a MP aprovada já é chamada de “minirreforma trabalhista”, pois de efeitos permanentes.

Poder-se-ia argumentar que é um ou outro caso “extremo” e que a calamidade pública justificaria flexibilizar (ainda mais) os direitos trabalhistas.

Ocorre que a CLT tem instrumentos suficientes para esses casos (como o disposto nos artigos 61, §3º e 502 da CLT, exemplificadamente). No entanto, esse argumento “a CLT tem instrumentos suficientes” já não cola com os ávidos pela “modernização da legislação”.

Porém, o que mais chama a atenção na referida medida provisória, aprovada pelo Congresso e que logo virará lei, é o “cheque em branco” para o Poder Executivo flexibilizar direitos [8]. Com essas medidas, passa-se para a esfera do Executivo a discricionariedade para mitigar os direitos trabalhistas. O direito do trabalhador fica ao alvedrio da autoridade pública.

Se já seria polêmico falar em “mitigação” de alguns direitos, como o FGTS, quando isso é discutido em sede própria, isto é, no Congresso Nacional, imagine nesse caso em que é o Executivo quem decide quando será a “flexibilização”.

Veja, não se está discutindo se a calamidade pública será bem decretada. É pouco provável que a flexibilização de direitos trabalhistas possa influenciar qualquer autoridade competente na decretação de algo que visa a dar conta de uma situação tão grave e caótica, principalmente do ponto de vista humano.

A questão é de forma mesmo. Antes, a preocupação dos defensores do Direito do Trabalho era com a flexibilização via Poder Legislativo. De todo modo, o Congresso Nacional é sede própria, onde há tempo, diálogos, estudos e possibilidade de consensos.

Contudo, com essa norma aprovada, até mesmo o Executivo — o qual é estruturado de maneira distinta, com decisões hierarquicamente estabelecidas e sem necessidade de diálogo com a sociedade — vai ter esse poder com o “cheque em branco” da referida medida provisória.

Sem contar que em casos de calamidade os trabalhadores pobres são os mais afetados, porque são eles que moram em locais de risco. Portanto, além de perderem bens (e, em alguns casos, até os membros de família), podem sofrer com a diminuição de direitos trabalhistas nos momentos de maior dificuldade na vida.

Em tempos passados, tal medida provocaria espanto e reação da sociedade jurídica. No entanto, depois de tantas modificações no corpo jurídico trabalhista, talvez a medida passe até despercebida para muitos ou soe natural. O “Direito do Trabalho” já está anestesiado — ou talvez moribundo — diante de tudo o que já passou nessas três décadas desde a Constituição de 1988.

Parece que a janela quebrada do Direito do Trabalho surtiu efeito para quem queria que fosse vandalizado. Será que o Judiciário e Legislativo deveriam ter posto freio ou “consertado” a janela lá atrás? Talvez, isso fosse suficiente para delimitar uma linha bem clara do que é possível ou não avançar. Se o limite não foi bem estabelecido, é provável que a degradação continue.

Talvez não sobre nada do carro em futuro próximo e seja até tarde para perguntar: “o que sobrou do Direito do Trabalho”?

Talvez o leitor pergunte: “mais um artigo sobre a degradação do Direito do Trabalho”? Calme leitor, meu trabalho é de formiguinha, só estou juntando os cacos da janela.

[1] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 655.

[2] Expressão usada pelo assessor de Bill Clinton, James Carville, quando da campanha presidencial americana de 1992.

[3] FELICIANO, Guilherme Guimarães. Curso Crítico de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 135.

[4] Bauman usa a expressão “gotejamento”: “O enriquecimento dos ricos não promove um ‘efeito de gotejamento’ nem para aqueles situados em sua vizinhança mais próxima nas hierarquias de riqueza e renda – sem falar daqueles que estão mais distantes, escada abaixo. A conhecida, embora cada vez mais ilusória, ‘escada’ de mobilidade ‘ascendente’ está se transformando cada vez mais numa pilha de grades impermeáveis e barreira instransponíveis” (BAUMAN, Zygmunt. A Riqueza de Poucos Beneficia Todos Nós? Rio de Janeiro: Zahar, 2015, p. 50).

[5] https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9173-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-trimestral.html?=&t=series-historicas&utm_source=landing&utm_medium=explica&utm_campaign=desemprego

[6] https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/07/29/desemprego-recua-para-93percent-em-junho-diz-ibge.ghtml

[7] Foram considerados inconstitucionais os artigos 29 (que não consideravam a COVID-19 como doença ocupacional) e 31 (que determinavam a atuação meramente orientadora dos auditores-fiscais do trabalho) da MP 927, nas Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade 6342, 6344, 6346, 6348, 6349, 6352 e 6354.

[8] Conforme redação do Art. 1º “Esta Medida Provisória autoriza o Poder Executivo federal a dispor sobre a adoção, por empregados e empregadores, de medidas trabalhistas alternativas e sobre o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, para enfrentamento das consequências sociais e econômicas de estado de calamidade pública em âmbito nacional ou em âmbito estadual, distrital ou municipal reconhecido pelo Poder Executivo federal”.

 

ConJur – Araújo Neto: O que sobrou do Direito do Trabalho

 

 

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